Exposição de ricardo navarro poves no secretariado de propaganda nacional, lisboa (12.6.1943-27.6.1943)
A exposição de Ricardo Navarro Poves, apresentado como “um dos mais notáveis pintores de Espanha (...) que tanto no seu país, como em França e na Itália, tem realizado exposições de êxito notável” e “pintor levantino, que se pode filiar, talvez, na escola do grande Sorolla”, trazendo “o sol, o colorido, a alegria da paisagem e das figuras de Valência” [1], foi inaugurada no dia 12 de junho[2] e encerrada no dia 27[3].
Nas páginas d’O Século[4], é sublinhado o cosmopolitismo do pintor espanhol, cujo “nome é citado com admiração nos grandes centros europeus da Arte” e cujas “exposições em Paris, Madrid, Roma, Marselha, alcançaram êxitos dos mais lisonjeiros”. É referida a sua educação francesa, em Marselha, o que justifica “o seu temperamento meridional”, que se reflete na sua obra. E sublinha-se o seu propósito: “Esta exposição de Ricardo Navarro, na qual figuram quarenta magníficos quadros, é mais uma esplêndida realidade da política de aproximação cultural luso-espanhola iniciada pelo S.P.N.”[5].
No catálogo da exposição[6], lê-se:
“Em oposição a preferências dos últimos anos pela composição abstrata e a pintura arquitetónica – ponderação de volumes, equilíbrio de planos, aspirações dos esquemas matemáticos – Navarro quer ser fiel à pintura pictórica. (...) Pintura «realista», descritiva, alegre e afortunadamente realizada com perfeitos dotes técnicos que lhe outorgaram já, em plena juventude, aqueles lisonjeiros elogios que apenas costumam ser concedidos à velhice. Depois de ter exposto a sua arte em Itália e em França, onde, tal como na sua pátria, obteve os mais lisonjeiros êxitos de crítica, Navarro mostra a sua obra na luz de Lisboa, com exuberância e esperança triunfal.”
Navarro Poves expôs 38 obras: Mi padre (n.1), Mi madre (n.2), A la fuente (n.3), Descanso de la bailarina (n.4), El manton do manila (n.5), Pedrillo, el vendedor de ajos (n.6), El niño de la naranja (n.7) Miss triana 1939 (n.8), El tio sento (n.9), El tio raboso (n.10), Repasando la leccion (n.11), Cosiendo las redes (n.12), Abanicos (n.13), Mendigo (n.14), Cobre (n.15), El viejo usurero (n.16), Carmen (n.17), La madre guapa (n.18), Maruxiña (n.19), Jueves santo en España (n.20), La virgem blanca (n.21), El borrachin (n.22), Vieja provençal (n.23), Niña en la playa (n.24), Senegales (n.25), Un dia de campo (n.26), Retrato de D.ª I. G. (n.27), Gitana (Bosquejo) (n.28), El tio Blay (n.29), El tenor Pascual Roig (n.30), En el parque del retiro (n.31), Autorretrato (n.32), Coqueteria (Desnudo) (n.33), San Pedro (n.34), Anciana (Dibujo) (n.35), Jovencita (Dibujo) (n.36), Señora (Dibujo) (n.37), En el lecho (Dibujo) (n.38)[7].
Sobre esta exposição, Adriano de Gusmão[8] escreveu: “O que primeiramente se sente diante dos quadros de Ricardo Navarro, jovem artista valenciano que agora nos visita, é a ausência de poesia e de estilo na sua pintura naturalista e impressionista. Já o seu naturalismo-impressionista é algo anacrónico, visto esse grande movimento de há uns sessenta e tal anos ter sido já há muito ultrapassado por intrínseca necessidade da arte.”
O crítico justifica a falta de “estilo” na obra de Navarro com a sua “mocidade”, mas não encontra motivo para a falta do “estremecimento da poesia”. Reconhece na cor a nota mais “pessoal” do pintor, na sua “intensíssima e crua vivacidade meridional”, mas critica o seu desenho e composições[9]:
Ricardo Navarro perde-se, é o termo, com bonitas e vistosas compatriotas, e daí, talvez, o ficar satisfeito com a sua obra, embora componha quadros que um artista mais exigente não figuraria assim, como «Un dia de campo» ou «En el parque del Retiro», com um inconsistente ambiente paisagístico e uma aflitiva futilidade de modelos. (...) Já em «Descanso de la bailarina» o pintor tem um característico modelo de mulher, (...); mas a realização deste quadro é dura no desenho e na cor (...). A cor é a nota mais pessoal deste pintor. (...) A cor traduz uma luz violenta que aviva as carnes e os trajos. É esta luminosidade, ainda que gritante, que redime os senões dos motivos e os deslizes de execução. Sim, porque este pintor tem não só certos momentos de desleixo na sua pintura, como erros de desenho, que às vezes chegam a diminuir imenso o valor dos seus trabalhos.
Como exemplos desses erros de desenho, Gusmão refere Ninã en la playa, nomeadamente o pormenor do braço esquerdo e as pernas da figura, e a água do mar de Cosiendo las redes, que
não possui a transparência que lhe é própria, e a espuma que encrista as ondas mais próximas é pintada grosseiramente, com descuidado despacho. Todo o quadro lembra demais aquela indiferença e moleza de observação do nosso pintor João Reis, se bem que a luz seja neste quadro mais viva e vincada do que é habitual no lusitano artista. Até o tema lhes é comum. (...) O pescador que conserta as redes tem o braço direito de anão e os volumes e massas cromáticas são indolentemente marcados. A figura feminina, em segundo plano, mal perspetivada na sua escala, tem as pernas pessimamente desenhadas e umas atrabiliárias pinceladas no vestuário. O melhor neste quadro é ainda o barco, pintado com vigor e justa largueza.
E o nu Coqueteria, que demonstra a dificuldade do pintor diante dos modelos femininos, já que, perante alguns “pormenores bem modelados, como os seios”, surgem outros “muito maus, como a coxa esquerda, sendo toda a perna direita mal desenhada (...) A própria composição é infeliz como cor para fazer ressaltar a carnação clara, mas muito academicamente procurada, dessa inexpressiva mulher nua.” Critica El Borrachin, pelo “mau gosto na sua exagerada mímica”, e os quadros Repasando la leccion e El tio Raboso, “desagradáveis de processos e menos harmónicos com a restante obra”. De acordo com o crítico, a “natureza sensual” do pintor valenciano pressupôs o falhanço da sua tentativa de pintura religiosa em La Virgen blanca.
Para Gusmão, o melhor quadro exposto é Jueves santo en España, do qual elogia o tratamento da cor, a composição e o desenho:
É um bonito quadro e bem composto. As duas figuras femininas, (...) têm elegância e nobreza de atitudes e discreta harmonia no movimento das mãos. Os negros luminosos dos vestidos são bem tratados, e as arrendadas mantilhas têm transparência; reconhece-se a matéria. Além do mais, o efeito é feliz entre estas duas jovens de trajo escuro e já em sombra e o fundo arquitetónico iluminado por viva luz.
Nos quadros El tio Sento e Vieja provençal, Gusmão afirma que o pintor “fez pintura”, ao mostrar as suas capacidades “quando se refreia e disciplina”, principalmente no segundo quadro. O balanço final de Gusmão acerca de Navarro Poves é um de pessimismo:
Enfim, um pintor desigual, o que espelha achar-se ainda distante da sua maturidade, a qual chegará não só com o andar do tempo mas também com o apuramento da sua sensibilidade e um mais cuidado exercício estrutural dos seus quadros. Mas, vista a orientação estética revelada por este pintor, não é provável que dê alguma resposta a quem interroga o futuro, mesmo quando se ache completamente evoluído e firmado.
N’O Século[10], a opinião é totalmente contrária, e os “tipos interessantes ou bizarros” de Ricardo Navarro são bem-vindos:
Mais uma vez o estúdio do S.P.N., onde têm exposto tantos artistas interessantes, se encontra verdadeiramente engalanado com a magnífica coleção de 38 quadros, da autoria do jovem e talentoso pintor valenciano Ricardo Navarro Poves, a quem está reservado um futuro brilhante, tal o conjunto de qualidades positivas e superiores que o seu pincel documenta. Vibrante de puro espanholismo, ansioso de arte e de beleza, a sua requintada sensibilidade reproduz as figuras da raça, na sua indumentária tão característica e, por vezes, tão decorativa, as «majas» de grandes «peinetas» e «mantillas», as andaluzas cobertas com os seus «mantons», floridos, tipos do campo, da praia, da cidade, que rescendem o aroma inconfundível das terras de Espanha.
Distinguem-se telas superiores, como Mi Padre, Mi Madre, Señora, La madre guapa, El borrachin, “encantador de graça, humorismo e realização”, e Jueves Santo en España, e, no registo ao ar livre, Cosiendo las redes e Niña en la playa, “de radiante luminosidade, digna da paleta de Sorolla”: “As suas paisagens têm uma vida ardente; a sua pintura, de um grande sentido realista, é um hino à cor”.
Outra opinião, desta vez favorável, no Diário de Lisboa[11]:
Ricardo Navarro, com sete cores de labareda – certas pinceladas vermelhas ficam a arder na retina! – a sua exaltação muito carnal da beleza, o seu sentido pitoresco, que vai do cigarro puro, ou como tal, ao exotismo negro, é um pintor de raça, forte, varonil, exaltado, cromático, para o qual a vida é uma festa dos sentidos, e a sua arte uma voluptuosa embriaguez. A sua «maja desnuda», que lembra, vagamente, a de Velázquez, que está em Londres, dá bem o carácter da arte de Navarro. Percorre-se a sua galeria – e só se encontra cor. Ele não sondará as almas, nem conjugará as harmonias suaves de tom, que se tornam eloquentes e audíveis para as sensibilidades que procuram além da forma, mas efusivo, explosivo, solar, ardente, juvenil, exuberante; vá de pintar as Carmens, de cravos vermelhos, as Rositas, de «peineta» alta como a Giralda, e, amantilhadas de negro até ao desespero da paixão, e as Dolores, cujos olhos de veludo, ofuscantes de negro, são o relicário de todo o portuguesinho entusiasta que, entre uma corrida de touros em Badajoz e uma noite de Triana, ao pé da Torre del Oro, ouvindo o alaúde mouro de Guadalquivir, recitará, com sete cravos de amor pregados no peito, os versos de Lorca, que todos nós cantamos.
E continua:
Ricardo Navarro (...) elegeu como tema predileto a mulher, de quem tanto faz o retrato, ora caracterizando-a com a rica e variada indumentária espanhola, ora a convertendo em elemento principal dum quadro de composição. Destacamos, a Senhora do cão (os títulos são nossos), elegante, ridente, lindamente madrilena, com o garbo da moda a que não falta sequer o bicho felpudo; outra sentada a que deu tenuemente o quer que seja de cigana, arrancando-lhe um belo sorriso, que escorre, na epiderme de oiro, alargando, desabrochando como uma rosa vermelha. O Avarento e o Negro são quadros de pitoresco, feitos com otimismo – em que a técnica, e não o assunto, em demasia focados, tem a vibração duma paleta feérica. As telas do mar, uma das quais será o «arranjo das redes», podem considerar-se impressões, e devem ser dos trabalhos mais antigos do artista. Duas naturezas mortas, excelentes, sobretudo, a da chaleira de cobre, e um retrato duma senhora de idade, desenhado, que é um pequeno «chef d’oeuvre» - de frescura, de sinceridade, de espontaneidade. A galeria, no S.P.N., deve obter êxito. Não é, apenas, uma exposição de pintura, mas uma parada de belezas femininas.
[1] Anónimo, «Ricardo Navarro pintor de Valencia expõe em Portugal», Diário de Lisboa, 23 de Maio de 1943, 3a edição, 2.
[2] Anónimo, «Vida Artística», O Século, 12 de Junho de 1943, 4.
[3] Anónimo, «Vida Artística», O Século, 26 de Junho de 1943.
[4] Anónimo, «O pintor espanhol Ricardo Navarro expõe, depois de amanhã, no Secretariado da Propaganda Nacional», O Século, 10 de Junho de 1943, 1.
[5] Anónimo, «O pintor espanhol Ricardo Navarro expõe, depois de amanhã, no Secretariado da Propaganda Nacional», 1.
[6] Secretariado de Propaganda Nacional, ed., Exposição Ricardo Navarro Poves (Lisboa: Editorial Império, 1943), 3.
[7] Secretariado de Propaganda Nacional, Exposição Ricardo Navarro Poves.
[8] Adriano de Gusmão, «Exposição Ricardo Navarro», Seara Nova, 26 de Junho de 1943, 185.
[9] Gusmão, «Exposição Ricardo Navarro», 185.
[10] C.A., «A exposição de pintura de Ricardo Navarro no S.P.N.», O Século, 13 de Junho de 1943, 1.
[11] A., «Um pintor da beleza da mulher espanhola expõe no S.P.N.», Diário de Lisboa, 12 de Junho de 1943, 2a edição, 7.